Eu, Voinha e Paulo Gustavo

Hannah Hebron
4 min readMay 5, 2021
Imagem (reprodução)

Voinha não ia ao cinema há mais de 30 anos. Cresci ouvindo dela que ela não teria paciência para passar mais de duas horas em uma sala escura, que ela não gostava de ver desgraça, e que duvidava que as histórias de hoje em dia a interessariam. Ao mesmo tempo, toda essa reclamação para com a sétima arte pareciam uma indireta daquelas que soam como um enigma pedindo para ser resolvido. Eu tinha certeza: vovó queria ir ao cinema. Aquela picuinha toda sempre me pareceu mais um chamado do que de fato uma reclamação.

Lá por 2011, foi lançado o filme da Bruna Surfistinha. Baita história. Uma sobrinha querida de vovó a convidou para ir ao cinema, garantindo que o filme era nacional e ela não precisaria passar duas horas lendo letrinha amarela.

Mesmo sendo uma mulher cheia de atitude e de cabeça aberta, vovó penou para gostar do filme. Ela queria dar risada, esquecer do mundo lá fora. Um filme com os dois pés em uma realidade dura não era para vovó, e aí lá se foram mais alguns anos sem cinema, já que naquela exibição de Bruna Surfistinha, vovó bateu o martelo: cinema não é para mim.

Mas voinha seguia dando pistas de que daria mais uma chance aos projetores e ao cheiro de pipoca. Mesmo não tendo gostado do filme, afirmava que a coragem e boa atuação de Deborah Secco eram dignas de prêmios e aclamação. O assunto estava sempre ali. Como uma pessoa que conta histórias tão bem, e é apaixonada por novelas, não gostaria de ver algo como um capítulo estendido de uma saga interessante?

Eu e mainha não desistimos. Sempre que íamos ver um filme, chamávamos vovó, que negava logo de primeira o convite. Até que ele chegou aos cinemas. Vovó virou fã de Paulo Gustavo depois de assisti-lo no teatro. E de lá em diante, seguiu acompanhando sua carreira com carinho e avidez.

Em 2014, quando estreou o filme "Os homens são de marte…E é pra lá que eu vou", estrelando Mônica Martelli e Paulo Gustavo (QUE química, por sinal), nem precisamos insistir muito. Vovó se arrumou e perfumou como se fosse encontrar pessoalmente seu ídolo da comédia. Entramos na sala de cinema, e acredito que pela primeira vez, no alto dos meus então 23 anos, vi vovó gargalhar daquele jeito — e olha que dona Zélia, apesar de não ter o riso frouxo, não é de esconder sorriso, principalmente depois de um uisquinho.

De lá pra cá, vimos todos os filmes desse gigante do humor, alguns juntas, outros separadas pela distância que, desde que saí de casa em 2015, insiste em nos acometer de saudade crônica. Mas mesmo separadas, sempre nos ligávamos para rir das nossas cenas preferidas.

Creio que Paulo Gustavo conduziu tão docemente vovó pela mão de volta para o mágico divertimento que é o cinema, que se você ler isso tudo pra ela, ela vai bem falar "e é, é? Lembrava dessas datas e disso tudo não". Mas eu guardo com muito carinho esses momentos com ela, e espero que o tão esperado fim dessa pandemia me permita muitas sessões de cinema com vovó ainda.

Sessões essas que não vão ter Paulo Gustavo para nos alegrar, mas que com certeza, trarão seu legado em novos artistas e películas. Paulo foi, e segue sendo, um ícone, e se destacava em tudo que se propunha. Não tive a sorte de conhecer Paulo para além de seus personagens. Na verdade, o abordei na saída do teatro só para dizer que o amava e amava sua arte. E vamos todos continuar dizendo isso sempre: amamos a arte de Paulo Gustavo. Somos gratos por ele.

A verdade é que mesmo não conhecendo Paulo, hoje todo um país chora sua perda, a perda do riso que ele trazia para milhões de pessoas. Choramos a injustiça que é ter perdido 400 mil pessoas para uma doença que já pode ser combatida por meio da VACINA, e que podia estar mais controlada por meio do isolamento social e de medidas sanitárias.

Paulo, e tantos outros, ainda poderiam estar vivos se a realidade do Brasil de hoje não fosse a do genocídio, do ódio, do descaso e da falta de empatia e amor ao próximo.

No Brasil de Paulo e de todos nós, muito se fala de Deus, mas pouco se aplica o que ele ensinou, seja lá qual for a religião. Muito se fala de combate a corrupção, mas nada é feito pelo povo. Muito se fala de poder, e pouco se faz a respeito da responsabilidade de um governante com sua nação, e de seus cidadãos uns para com os outros. Muito se fala, pouco se faz.

Paulo se foi injustamente depois de muita luta, mas é preciso acreditar que tudo aquilo que representa esse grande artista, sua alegria, o riso, a humanidade, empatia e o amor, ainda vão vencer o mal.

Eu e voinha agradecemos pelos sorrisos, Paulo.

--

--

Hannah Hebron

A Brazilian journalist living in Tel Aviv and writing in portuguese and english about fashion, feelings and work. Yeah, a lot… But you’ll get it eventually.